Navegar ainda é preciso, resistir também: Festival de Saveiros marca a luta pela preservação da tradição no recôncavo baiano

Reportagem de Laís Matos e fotos de Sérgio Isensee

Foi ainda criança que Ubiracy Portugal, o pequeno Bira, inspirado pelo pai saveirista, Mestre Carlito, descobriu sua grande paixão pelos saveiros e pela vida sobre as águas. Quando não viajava com o pai, a brincadeira preferida do menino era fazer maquetes e miniaturas das embarcações para soltá-las na beira do rio Jaguaripe, onde passou a infância. “Tenho 41 anos e a minha vida foi toda nos saveiros”, conta o saveirista e nautimodelista, que trabalha desenvolvendo réplicas e miniaturas de saveiros e luta para manter viva a cultura das embarcações.

Da tradição, passada de geração a geração, os saveiros resistem nas águas da Bahia, principalmente na região do recôncavo. No último domingo (29), o trecho que divide as cidades de São Félix e Cachoeira foi palco do Bordejo pelas Águas, encontro que reuniu 16 saveiros e integrou a programação do Festival de Saveiros, primeira Festa Náutica do Vale do Paraguaçu.

Dada a largada, os saveiros com vela de içar circundaram a Pedra da Baleia e retornaram para o píer de São Félix em um grande desfile que teve como manifesto, o resgate da memória e a valorização da sua salvaguarda como patrimônio da Bahia.

Hoje restam cerca de 20 saveiros de uma frota que, no século XIX e início do século XX já chegou a aproximadamente 1500 embarcações. Nesse período, o historiador Oséas Souza conta que os saveiros tiveram um papel fundamental no processo de industrialização das duas cidades irmãs, maior entreposto comercial da época. “São Félix era uma cidade industrial que importava e exportava mercadorias através dessas embarcações para todo o Recôncavo da Bahia, Sertão e Salvador. Grande parte das fábricas estavam aqui, de bebidas, charutos, produtos de limpeza, doces, e, por isso, aportavam barcos de todo o Brasil”.

A estrada era o rio

Como ainda não haviam estradas, as principais rotas para o transporte das mercadorias eram o rio Paraguaçu e os trilhos do trem a vapor, que chegava até a cidade por meio da ponte histórica, inaugurada no século XIX com a presença do Imperador Dom Pedro II, que lhe emprestou o nome. “A partir dos anos 1970, a indústria começou a migrar para regiões mais próximas da capital e, junto com a construção das BR’s, a expansão da indústria petrolífera e construção de refinarias no recôncavo baiano, os saveiros pararam de transportar cargas e os saveiristas foram perdendo sua principal fonte de renda”, conta Oséas que é autor dos livros História e Memória de São Félix e Cultura de São Félix, que será lançado neste ano.

Historiador Oséas Souza

Com o fim dos saveiros de carga, os saveiristas passaram a buscar outras formas de preservarem as embarcações e perpetuarem a tradição. “Estamos buscando alternativas para manter as embarcações vivas e vemos o turismo como um caminho viável, mas precisamos de apoio”, revela Roberto Bezerra, 68 anos, conhecido por todos como Malaca e um dos fundadores da Associação Viva Saveiro, grupo criado em 2006 que reúne saveiristas e pessoas apaixonadas com o objetivo de resgatar a história dos mestres saveiristas e recuperar as embarcações.

Sócio do Sombra da Lua, saveiro concedido por Mestre Bartô quando já não podia mais navegar e tombado como patrimônio da paisagem cultural brasileira, Malaca conta que a organização nasceu junto com o processo de restauração da embarcação e foi crescendo com a chegada de novas pessoas motivadas a preservar a tradição, como a arquiteta Marília Barreto, de 56 anos, sócia do saveiro É da Vida e membro da associação.

“Tanto o É da Vida como o Sombra da Lua eram responsáveis pela última rota comercial de saveiros do recôncavo, o trajeto da louça, que ia semanalmente de Maragogipinho a Salvador e sustentava as embarcações. Com a reforma da Feira de São Joaquim, nós perdemos essa rota secular e também a renda, dificultando inclusive o turismo que era viabilizado no lugar. O meio mais oportuno para manter viva a memória dos mestres e preservar as embarcações hoje é o turismo”, destaca a saveirista.

E se navegar é preciso, que a tradição seja preservada e o conhecimento transmitido para as futuras gerações. Foi assim que Malaca passou para o filho todos os ensinamentos e experiências e hoje deixa a herança cultural para o neto Gabriel, de apenas 11 anos, que já segue os passos do avô. “Estamos aqui hoje para retomar a nossa presença, somos os heróis da resistência”, orgulha-se.

Já Ubiracy compartilha a sua paixão pelos saveiros com estudantes através do serviço de convivência da Prefeitura de Jaguaripe. O artesão, que já participou do curso de nautimodelismo em Santa Catarina, no Museu do Mar, para aperfeiçoar a técnica, dá aulas na escola para adolescentes a partir de 16 anos e também para crianças de 10 anos. Além de perpetuar a cultura náutica do recôncavo, ele oferece uma oportunidade de fonte de renda para os jovens com a venda dos modelos. “A gente tá correndo atrás para tentar manter essa cultura nossa. É o sonho, que não se acabe”, afirma.

Patrimônio do estado e Salvaguarda

Além do bordejo pelas águas do Paraguaçu, o Festival de Saveiros contou com uma programação intensa no Porto de São Félix, durante os três dias de festa – de 27 a 29 de maio – que reuniu shows de samba e reggae, Feira de Economia Criativa e Agricultura Familiar, exposições, concurso de desenhos e redação nas escolas da cidade e ação de conscientização ambiental com a limpeza das margens do Rio Paraguaçu. O encontro homenageou a Dona Cadu, a mais famosa ceramista da Bahia, pelo seu centenário e contribuição para a cultura do Recôncavo.

Na sexta, o público pode conferir o Encontro dos Sambas de Roda do Recôncavo, com os grupos Samba de Roda Filhos de Nagô, de São Félix, Gêge Nagô, de Cachoeira, e Samba Filhos de Dona Cadu, de Maragojipe. No sábado à noite, o palco ficou sob o comando do reggaeman Sine Calmon e, no domingo, do cantor Jau, que realizou o seu sarau. Também subiram no palco os talentos da terra: Nathan Gomess, Nelma Marks, Juninho Cachoeira, Orquestra Reggae de Cachoeira e Orquestra Jovem do Recôncavo.

O Festival de Saveiros – I Festa Náutica do Vale do Paraguaçu foi idealizado por Wandick Vieira, com a produção da Tabuleiro Produções e Um Som & Imagem e contou com patrocínio do Governo do Estado da Bahia, através das Secretarias de Turismo (Setur) e Comunicação – SECOM, e apoio institucional de Bartinho da Silva e Prefeitura de São Félix. Para mais informações sobre o evento, acompanhe no Instagram: @festivaldesaveirosoficial

Gabriela Bandeira
Comunicativa, antenada e com atuação há mais de 16 anos na área de assessoria de comunicação, Gabriela Bandeira é jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com curso de extensão na Universidade de Jornalismo de Santiago de Compostela (Espanha). Em 2019, reuniu toda a sua experiência e expertise em comunicação estratégica e conteúdos digitais, com atuação há mais de 12 anos no segmento de shopping center, e abriu a própria agência: a Comunicando Ideias. Filiada à Associação Brasileira de Agências de Comunicação (ABRACOM), possui alcance na Bahia e outros estados do Nordeste.